Há o dizer e há o fazer. Por vezes as duas condições coincidem como é o caso do trabalho em prol do estilo de vida mediterrânico da Associação In Loco. Uma prática mais próxima da sustentabilidade dos territórios, da autoestima das populações e do reabilitar dos produtos e comeres que são nossos. Uma conversa com Artur Gregório da In Loco que faz justiça à frase-chave da instituição: “Pensar no global, agir no local”.
Quantas vezes preenchemos, de facto, de conteúdo a expressão tão recorrentemente utilizada, “estilo de vida mediterrânico”? A prática de vida de muitas comunidades em torno e na periferia do grande mar interior e que traz associada a milenar Dieta Mediterrânica, reconhecida em 2013 como Património Mundial e Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
A resposta à pergunta é-nos dada nesta conversa por Artur Gregório, da Associação In Loco, entidade criada em 1988 e que, em Portugal, há muito se embrenha nos territórios com objetivos bem definidos, entre eles, promover a autoestima das pessoas e comunidades, melhorar as condições de vida. Isto com uma base de sustentação e de lógica de ação.
Para a Associação In Loco, a resposta para a revitalização de projetos de vida e comunitários, está nos próprios territórios e no que lhes é mais genuíno, os modos de vida e de produção que se desenvolveram durante séculos e com uma mensagem atual neste século XXI: sustentabilidade.
Um reabilitar de orgulho local, de jovens (e menos jovens empreendedores) que estão a redescobrir o nosso país e sobre uma rede de oito estados da bacia mediterrânica preocupados em sedimentar os princípios do estilo de vida inerente às comunidades que proliferaram em torno daquele mar comum.
Ainda recentemente a In Loco liderou uma iniciativa que selecionou e elegeu as quatro melhores experiências de turismo gastronómico sustentável de Portugal. Ficámos, então, a saber que em Portugal temos a versão Ibérica de couscous, os nossos cuscos transmontanos, de Bragança. Ou que nas Aldeias Históricas de Portugal as portas estão abertas para receber visitantes e fruir uma refeição local (“Almoce e Jante Connosco”). Isto entre dezenas de outras iniciativas.
“Pensar no global, agir no local” é como a In Loco sintetiza a sua ação. Uma luta de “David contra Golias, como sublinha Artur Gregório, face ao poder de um mundo governado por multinacionais. Mas uma batalha com estratégias e argumentos para ganhar terreno face aos gigantes da comida uniformizada, processada e manipulada. Isso mesmo percebemos nesta conversa.
Artur, a associação que lidera traz já um longo historial. Recentemente foi destacada a propósito de uma iniciativa em torno dos patrimónios gastronómicos sustentáveis. Estão de boa saúde, presumimos?
Estamos a fazer 30 anos em 2018. A Associação In Loco é uma das primeiras ligadas ao desenvolvimento local no país. Já são muitos anos, as coisas entretanto foram mudando mas temo-nos adaptado a novos desafios, dai que a diversificação de atividades de base local tem sido muito importante. Temos equipas a trabalhar no desenvolvimento local, junto de agricultores e da produção, mas também temos linhas de ação complementares, ajudando na organização dos produtores, na melhoria da qualidade de vida das comunidades e ajudando neste tema federador que é o da Dieta Mediterrânica.
Ou seja, ajudando na criação de valor acrescentado baseando nos nossos recursos e identidades. Pegar naquilo que temos de mais singular e transformá-lo em bons produtos e serviços e, com eles, garantir a sustentabilidade dos territórios e o orgulho naquilo que somos.
Ou seja, acabam por trazer unidade a atividades e iniciativas dispersas nos territórios, dando-lhes uma motivação comum, certo?
Sim, não temos de copiar o que chega de fora. Basta que sejamos como somos, fazer o que fazemos, usar os produtos, saberes, conhecimentos, espaços que temos e com isso criar valor e diferenciação. E, maravilha das maravilhas, estamos a trabalhar num estilo de vida reconhecido como Património Mundial e Imaterial da Humanidade e que tem associado um padrão alimentar que a Organização Mundial de Saúde classifica como sendo dos melhores do mundo.
Inclusivamente criaram uma rota que liga Lisboa a Tavira, quer falar-nos desta iniciativa?
Exato. Tem um objetivo muito claro, criar destino em torno do turismo gastronómico mediterrânico. No primeiro ano e meio de projeto identificamos locais e experiências muito interessantes e, depois, começámos a ligá-las através do património gastronómico, cultural, simbólico. Lançámos o projeto no Mercado de Alvalade, em Lisboa, com uma proposta com bom acolhimento do público e com a mensagem, “venha descobrir este estilo de vida com uma viagem entre Lisboa e o Algarve”. Todos os lisboetas vão ao Algarve, mas o objetivo é, normalmente, fazerem-no o mais rápido possível. O nosso repto é irem um movimento inverso, ou seja, o mais devagar possível, conhecer o território, mesmo que leve três dias. De permeio há muitas iniciativas também no Alentejo.
Todos os lisboetas vão ao Algarve, mas o objetivo é, normalmente, fazerem-no o mais rápido possível. O nosso repto é irem um movimento inverso, ou seja, o mais devagar possível, conhecer o território
Ou seja, apesar de estarem sediados no Algarve, congregam entidades noutras regiões.
Sim. Temos uma comunidade de empresas denominada Rota da Dieta Mediterrânica. Esta comunidade começou no Algarve com um projeto piloto em 2016. Cresceu para o Alentejo e, agora, já chega a Bragança. Cada vez mais há projetos, entidades, iniciativas que se identificam com o princípio da dieta mediterrânica.
Inclusivamente lançaram um guia denominado “Viagens Mágicas à Nossa Terra”…
Essa primeira foi a viagem que referi, de Lisboa até Tavira, da capital até à cidade representativa da dieta mediterrânica. Um guia que liga algumas das entidades que agregamos. Estamos agora a trabalhar num novo itinerário e temos, inclusivamente, o propósito de fazermos um roteiro em torno da estrada Nacional 2, descobrindo os sabores da gastronomia de norte a sul do país.
Estamos a redescobrir e a reencontrar o nosso país?
Claro e estamos a assumi-lo com orgulho e com muita qualidade. Em vez de estarmos a oferecer algo que pensamos que os outros gostam, fazemos aquilo que é bom e, os outros gostam realmente. Os nossos produtos locais começam a ter o seu genuíno valor, os lugares a serem visitados pela sua singularidade. E estamos a fazer dinheiro com isso.
Há uma nova geração de empresários e empresárias a fazer coisas muito interessantes em torno do que tenho referido e, dispostos a trabalhar em rede, para criar escala.
Consegue traçar-nos o perfil tipo das pessoas e entidades que estão a dinamizar estes territórios?
Sim. Esta é uma realidade que veio muito no rescaldo da crise e vemos que muitos dos mais criativos, originais, inovadores e empenhados membros da rota que trabalhamos são pessoas que têm formação avançada, muitos deles estiveram no estrangeiro, não se realizaram nos seus planos originais e, dai, decidiram reinventar o seu trajeto. Isto olhando para aquilo que eram os seus recursos, dos pais, dos avós, as casas, as terras. Muitos recorrem a estes recursos do passado, reinventam-nos de uma forma moderna, adaptada à procura atual. São projetos viáveis em zonas de baixa densidade, do interior.
Tocam um ponto bastante importante, o da sustentabilidade. Quer aprofundar?
Não é retórica. A primeira tarefa que os parceiros do Medfest, iniciativa que agrega oito países que partilham a dieta mediterrânica, tiveram foi o de criar um quadro de referência para que uma experiência gastronómica alicerçada na dieta mediterrânica seja sustentável. Hoje em dia, fala-se no ecológico, no sustentável, mas na realidade muitas vezes não é bem assim. Estes projetos que temos identificados nos oito países que fazem parte da rede seguem estes requisitos.
Hoje em dia, fala-se no ecológico, no sustentável, mas na realidade muitas vezes não é bem assim.
É um facto que nos temos afastado deste estilo de vida, o da dieta mediterrânica. Estamos numa situação crítica?
Numa situação perigosa. É uma luta de David contra Golias. Felizmente as entidades estão a mobilizar-se. Mas se olharmos para o orçamento de investimento e as iniciativas que estão a trabalhar essas entidades, face ao orçamento de uma multinacional que coloca nos mercados alimentos processados, carregados de açúcar e gordura, verificamos que há uma pressão externa para modelos culturais que não nossos muito forte.
Um segundo caminho passa por colocarmos nas opções alimentares dos jovens esta alimentação. Ou seja, torná-la viável e um caminho. Do lado das empresas ajudá-las para que percebam as oportunidades de negócio sustentado que há aqui. Pensarem que se calhar não têm de andar a inventar nada, está tudo ali.
Esta é também uma luta contra uma questão de saúde pública, a da obesidade. Como comenta?
Felizmente o nosso estilo de vida tradicional tem um regime alimentar que é muito bom. A própria Organização Mundial de Saúde, como o nossa Direção Geral de Saúde, aponta que a solução para grande parte dos problemas alimentares passa pela adoção de um estilo de vida saudável como a dieta mediterrânica.
Acresce que temos excelentes produtos alimentares de base.
Exatamente. A Dieta Mediterrânica é vertical, abrange não só como comemos, mas também a produção agrícola de base. Temos estado a abandonar culturas porque os mercados modernos não utilizam os produtos que dai saem. Com este recuperar do estilo de vida mediterrânico, estamos a cooperar para que estes produtos se mantenham. É claro que há um longo caminho a fazer.
É uma mensagem que, no terreno, está a passar também para as crianças?
Aos poucos chega. O nosso alvo claro nesta estratégia são as crianças e as empresas. Temos um projeto, um repto que partiu da Direção Geral de Saúde e que se denomina “O Prato Certo”. O objetivo é a educação alimentar da comunidade em torno da dieta mediterrânica, dado ser simples, apetitosa, saudável e barata. Em setembro será lançada esta plataforma.
Felizmente o nosso estilo de vida tradicional tem um regime alimentar que é muito bom.
Toda esta lógica de que temos estado a falar acaba por se ligar a dois projetos internacionais a que se associaram. Gostaríamos que aprofundasse.
O INTERREG Mediterranean é um programa de cooperação transnacional no mediterrâneo, que tem vários subprogramas. Entre eles, o MEDFET que trata do turismo gastronómico sustentável. Temos a Eslovénia como chefe de fila e países como a Itália, a França, a Espanha, a Croácia, Portugal, a Grécia e Chipre. Oito países unidos à volta da promoção do estilo de vida Mediterrânico e da sua gastronomia como forma de melhorar o equilíbrio e sustentabilidade do território.
Repare, o sol e o mar são grandes destinos turísticos nestes países e nós queremos diversificar. Criar produtos fora da época alta, complementares, que aumentem a sustentabilidade destes territórios.
Em cada um destes países há um projeto piloto a ser desenvolvido, no fundo a aplicar todos os princípios. O nosso é exatamente este, o de promover o destino do turismo sustentável no território em torno da dieta mediterrânica.
Qual é a “saúde” do estilo de vida mediterrânico em cada um destes países?
A dieta mediterrânica não é uma checklist de itens, dai que não se possa dizer que este país cumpre cinco itens e o outro três. É mais uma atitude face ao território das comunidades que, quer seja na costa, ou na montanha, viveram milénios dos recursos locais. Essas pequenas comunidades baseavam-se no princípio da sobrevivência, sabendo que tinham de pagar aos donos das terras e dos fatores de produção. Com o que sobrava tinham de sobreviver em regiões difíceis. Com isto criaram uma forma muito sábia de viver em harmonia com a natureza e os seus ritmos.
Esta forma de ser e estar varia de território para território. O aproveitar o que cada local tem de espontâneo é algo local. A lógica, contudo, é sempre a mesma. A carne de vaca, ou o bife de atum não estão aqui, porque faz parte da comida dos ricos. Aqui estão os peixes pequenos, a espinheta do atum, a galinha, os legumes, as ervas espontâneas. Em Portugal temos uma particularidade ainda maior que é a nossa posição geoestratégica face ao Atlântico que nos permite diferenciar e criar uma identidade muito própria.
O modelo que, aqui em Portugal, nos foi vendido durante muitos anos era que o interior era pobre e retardado. Isso levou-nos a perder muitos dos recursos e potencial por estarmos obcecados com realidades que nada tinham a ver com a nossa matriz cultural.
De 6 a 9 de setembro vão estar envolvidos na Feira da Dieta Mediterrânica. Um evento que acaba por ser súmula de tudo aquilo que aqui conversámos.
Sim, este evento mostra como a Dieta Mediterrânica é um elemento agregador. Ela evolui de uma iniciativa com 27 anos que era a Feira da Serra, com produtores locais. Evoluiu com o reconhecimento da Dieta Mediterrânica como Património Mundial e tornou-se um elemento agregados até para as instituições. Uma feira que na comissão de organização estão a câmara municipal, direções regionais, associações, empresas. Isto em torno da convivialidade. Isto vai ao encontro da vida das pequenas comunidades que referi. Elas não viviam da guerra, mas das trocas comerciais.
Fonte: Sapo